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abrir a palavra, fluir o rio

Relato do encontro “Viver é ir entre o que vive - Como um cão, um homem, como aquele rio", com Maíra Vaz Valente, realizado em 2 de agosto de 2021


Viver é ir entre

O que vive

Como um cão,

Um homem,

Como aquele rio


Estes versos, assim dispostos, são o início de uma apropriação do texto O Cão Sem Plumas, de João Cabral de Melo Neto, início pois foram o título dado para o encontro que nós do grupo Entre tivemos com a professora, artista e pesquisadora Maíra Vaz Valente. Após uma breve apresentação, Maíra propôs que continuássemos a apropriação das linhas de João Cabral, indicando que sem ordem definida lêssemos versos que nos chamaram a atenção de alguma forma na leitura que havíamos feito previamente. Assim, remontamos a obra do autor. Em alguns minutos fomos de trechos da primeira página até as últimas e as do meio, com a sensação de que poderíamos continuar nessa dinâmica por um longo tempo, as possibilidades de caminhos entre as linhas e páginas pareciam infinitas e até mesmo quando algumas palavras se repetiam a leitura se renovava, pois as vozes eram diferentes e carregavam entonações distintas.


Enquanto lia os versos que me marcaram

Como um cachorro

é mais espesso do que uma maçã.

pensava o porquê de outros terem tido este efeito nas outras pessoas presentes, o porquê e o como daquelas palavras terem chegado mais perto de alguém e não de outrem e também pensei nas palavras que ninguém disse, se teriam sido menosprezadas e esquecidas e ainda refleti se todos os textos são assim: um amontoado de palavras que se apoiam em outras para imergir e atravessar. No caminho entre a leitura e o texto, em que momento encontramos essas palavras? Penso se elas, as palavras, consideram nossas bagagens e se só assim consideram embarcar. Tenho pensado muito em palavras e soube que Maíra também.

Maíra Vaz Valente - umCãodePlumas (2010-2016)


A artista nos apresentou alguns de seus trabalhos, o primeiro foi o umCãodePlumas que consiste em uma performance na qual Maíra se coloca dentro de uma canoa em um lago e durante o tempo da ação preenche o barco com as águas. Esta obra carrega título semelhante ao nome do texto de Melo Neto, O Cão Sem Plumas e versa sobre a realidade de um rio - o Capibaribe, que fica em Pernambuco - e do povo que vive junto dele.


Maíra Vaz Valente - Inundação (2015)


O rio, as águas, retornam em outro trabalho: Inundação (2015) é um tecido azul extenso disposto no chão que tem aberturas para que possa ser vestido, “é uma performance duracional, na qual eu e o público bordamos juntos palavras ou poesias para serem lançadas aos nossos rios, de nossas cidades e como presentes, sobre uma veste azul. Inundar-se da experiência, inundar-se do mergulho, inundar-se da intenção do gesto e da palavra para celebrar o elemento nos que mantêm vivos”, como escreve a artista. A extensão do pano de Inundação possibilita a construção de um texto coletivo, acumulativo e fluido. O encontro entre artista e público ativa o espaço pelas palavras e os diálogos materializam o fluxo da linguagem e da água, como no exercício que fizemos com a leitura do texto de João Cabral.

Maíra Vaz Valente - Tecido social (2014)


Em Tecido Social (2014), duas máquinas de costura são postas frente a frente, Maíra toma posto em uma delas e convida o público a ensiná-la a costurar ou ensina o que sabe para o interator. Esta performance não tem o intuito de produzir peças de roupas ou bordados elaborados, para a artista o que interessa é a troca de saberes. A costura é um ofício tradicionalmente passado pelas gerações e esta ação pensada para o espaço expositivo busca integrar diferentes camadas sociais em uma só trama fazendo uma alusão a intergeracionalidade pela construção de um trabalho coletivo que agrega os saberes dos que interagem com a artista.


Os títulos das obras de Maíra redimensionam a palavra para dentro de suas propostas, no ato performático os significados se expandem e se renovam, o diálogo é uma forma de “abrir a palavra”, como ela nos contou e ainda completou dizendo que “o título que dá pistas é o início de uma conversa”. A professora, artista e pesquisadora também falou um pouco da sua relação com o público ser outra por ter se formado em um curso de licenciatura, por entender que sua formação busca refletir a realidade e a educação possibilita estar no meio de muitos.


O fluxo, a construção pela coletividade, a aproximação, a troca e as palavras são o que nos marcam no trabalho da artista e o nosso encontro com Maíra Vaz Valente foi cheio de transbordamentos e mediações poéticas e dialógicas. Se fizéssemos agora novamente o exercício de leitura da poesia de João Cabral de Melo Neto acredito que começaria dizendo estes versos:


Na paisagem do rio

difícil é saber

onde começa o rio;


e depois estes:


Junta-se o rio

a outros rios

numa laguna, em pântanos

onde, fria, a vida ferve.



sobre a autora:

Júlia Ramalho é artista visual e graduanda do curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santos (UFES). Dentro de sua produção explora a linha contínua no desenho como expansão do gesto e tem interesse de pesquisa no campo da docência-artística. É membro do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e Arte Contemporânea (CE/UFES).



referências:

CABRAL DE MELO NETO, João. O cão sem plumas. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4544018/mod_resource/content/1/Jo%C3%A3o%20Cabral%20de%20Melo%20Neto%20-%20O%20c%C3%A3o%20sem%20plumas.pdf>. Acesso em: 24 Ago. 2021.



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