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antes da era Google

No verão de 2016 assisti a uma palestra sobre arquivo e fotografia que aconteceu no Museu da Escola Catarinense, em Florianópolis, onde o pesquisador falava sobre os desafios enfrentados contemporaneamente com o processamento de dados e as formas de acesso aos documentos que vivemos diante da profusão de imagens criadas diariamente. Eu não lembro o nome do palestrante ou o título da palestra, porque eu parei no evento por uma casualidade (estava visitando um museu no dia que aconteceria), mas me ficaram algumas imagens e dados na cabeça, que infelizmente não anotei (porque, novamente, não estava preparada para uma atividade acadêmica no meio de janeiro).


Um primeiro dado específico que me lembro era de um gráfico que registrava o quantitativo de imagens produzidas a cada década, marcando um crescimento astronômico quando as câmeras digitais foram criadas (o que coincidia, segundo o palestrante, com uma crise na indústria da fotografia analógica e da empresa Kodak). Outra coisa que me chamou atenção foi da temática mais recorrentemente registrada nas imagens fotográficas: gatos! Segundo os dados numéricos que ele apresentou, o quantitativo de imagens de felinos publicadas online era já 3 vezes maior do que o número de gatos domésticos existentes no mundo.


Mas teve uma informação em específico apresentada durante a palestra que me chamou muita atenção naquele dia, o trabalho de um artista. A fala, vale lembrar, abordava arquivo e fotografia, portanto a obra apresentada versava sobre a complexidade de lidar com a quantidade de imagens que temos presentes na contemporaneidade e não conseguimos mais guardar, catalogar, registrar, documentar. Se tratava de uma instalação, para discutir como criamos, consumimos e compartilhamos tantas fotografias que parece que vivemos afogados num conjunto montanhoso imagético, justamente a sensação que a tal referência me deixou como lembrança.


Eu fiquei com um conjunto de imagens na cabeça. Lembrava da descrição do trabalho, dos dados apresentados sobre a montagem da obra, de características sobre a forma como a instalação ocupava o espaço. Mas nos meses e anos que se seguiram de jeito nenhum conseguia lembrar da autoria ou do título do trabalho. E foi assim que fiquei por anos pesquisando por essas imagens. De vez em quando elas me vinham a cabeça e eu voltava a procurar por palavras-chave no Google: “artista montanha imagens rede social”, “obra instalação fotografias montanha”, “rede social conjunto fotografias obra artista contemporâneo”. Nenhuma dessas pesquisas resultava, obviamente, numa conclusão para que eu pudesse finalmente encontrar a obra-referência.


Essa tentativa frustrada de procurar as imagens por um conjunto de verbetes soltos me faz pensar sobre o modo como pesquisamos por referências visuais. Encontrar imagens a partir de palavras é um desafio, mas hoje muito mais facilitado pelas possibilidades que a tecnologia e os bancos de dados digitais nos criam. Mas como buscávamos por imagens antes disso?


Joan Fontcuberta (2016, p. 98) analisa essa questão, ao se perguntar, como resolvíamos a muitas perguntas antes do Google. Os dados quantitativos de buscas evidenciam como hoje nos tornamos quase dependentes dos bancos de dados digitais e das grandes plataformas de buscas para pesquisa. “Em 2008, mais de 31 bilhões de buscas por mês foram feitas no Google; em 2006, esse número era de apenas 2,7 bilhões. (Para 2016, cerca de 105.000 milhões de pesquisas por mês.) Quem resolveu todas essas questões a.G.? (a.G. = antes do Google)”.


Cabe destacar como esse dado já foi atualizado e em 2021 o número de pesquisas diárias no Google era 3,5 bilhões de consultas, segundo o site Internet Live Stats. Pensa no que é isso: diariamente tínhamos 3,5 BILHÕES de consultas diárias há dois anos atrás! Muitas dessas consultas estavam acessando e buscando por imagens. E pensar que parte dessas buscas foram impulsionadas por um vestido!


Conforme texto anterior que publiquei com Any Wutke, “Em 2001, três anos depois do lançamento do que se tornaria o maior site de buscas e pesquisas [o Google], foi criada uma ferramenta específica para a busca de produtos visuais, o Google Imagens” (ROCHA; WUTKE, 2021, p. 798). A ferramenta foi desenvolvida depois que o vestido da grife Versace utilizado por Jennifer Lopez na premiação do Grammy no ano 2000 causou grande curiosidade e provocou inúmeras buscas dos usuários. “O interesse dos espectadores da cerimônia pela autoria do vestido provocou o aumento das buscas online, contudo, o que continuamente se encontravam eram links para matérias em formatos de texto, sem conseguir acessar, em poucos cliques, a informação que desejavam buscar”.


A plataforma compreendeu a demanda por uma filtragem específica nas formas de busca e assim desenvolveu um modo direcionado de filtragem dos resultados. Assim, a relação entre desejo e consumo marcou a criação do desdobramento da plataforma de buscas especificamente voltada para um acervo visual: o Google imagens.


Hoje, as ferramentas de pesquisas imagéticas no Google se desenvolveram ao ponto de conseguirmos buscar respostas não somente a partir de verbetes, mas a partir das próprias imagens. A leitura dos elementos que as compõem permite identificar autoria ou chegar a resultados semelhantes em termos de cor, forma ou composição. Conseguimos no arrastar de uma imagem como pesquisa encontrar outras semelhantes, identificando inclusive fontes e origens - o que teria ajudado muito a identificar a autoria da referência da palestra, se eu tivesse algo mais do que as palavras soltas que de vez em quando buscava aleatoriamente.


Existem sites de lojas utilizando esse mecanismo de busca, aproveitando imagens de referência para sugerir aos clientes potenciais peças substitutas para montagem de determinado look, evidenciando como a moda, o desejo e o consumo estão muito atrelados a essas ferramentas de pesquisa das imagens.


O exercício frustrado de procura pelo trabalho ao longo de muitos anos me fez remeteu à proposição de Ana Carolina Pimentel construída no ativação #2 saber-poder, Castelo de livros. Nesse trabalho, a artista empilhou diferentes livros de arte que representam a pesquisa pelo universo visual, refletindo sobre a fragilidade desse instrumento de estudo e investigação na contemporaneidade. Com a ação de equilibrar esses instrumentos de pesquisa, Ana Carolina nos provoca a pensar sobre a imagem na era pós-fotográfica, problematizando a velocidade da informação nos meios digitais, a fragilidade do modelo físico como fonte na contemporaneidade e as mudanças na formação em arte nos dias atuais.


Ana Carolina Pimentel - Castelo de livros (2022)


O efeito de desequilíbrio e a busca complexa por fontes de acesso às imagens que Ana Carolina Pimentel propôs remonta a minha busca incessante pela referência citada na palestra do verão de 2016. Em algum momento uma combinação de verbetes teve mais sucesso e consegui finalmente encontrar o trabalho citado na fala sobre processamento de dados e arquivamento de imagens na contemporaneidade.


A série que o palestrante apresentou naquele dia tratava-se de 24 hours in photos, um conjunto de imagens da instalação desenvolvida pelo artista Erik Kessels, que ocupou um espaço expositivo de uma galeria (e posteriormente de uma igreja) com 350.000 fotografias impressas, que representavam à época (2011) a quantidade de imagens postadas em um dia numa rede social voltada para o compartilhamento de fotografias, o Flickr.

Erik Kessels - 24 hours in photos (2011)


Essa série tem sido referência das minhas práticas como professora desde que passei a desenvolver pesquisas e disciplinas que versam sobre o mundo visual e consequentemente está citada em diferentes trabalhos de conclusão de curso que orientei desde então, porque, com a instalação, Kessels consegue sintetizar parte das discussões que estabelecemos sobre o mundo-imagem e a sensação de afogamento que vivemos na contemporaneidade. Mas não só.


O trabalho versa justamente sobre a dificuldade de acesso que temos às imagens e aos modos de pesquisa, que eram ainda mais acentuados antes da era Google. Como pesquisar imagens antes das plataformas que permitem criptografar os elementos visuais? Havia sempre a necessidade de vincular uma pesquisa à linguagem verbal? As fontes de acesso estavam limitadas ao alcance físico - os livros que consigo aceder, os arquivos que posso abrir, as fotografias que posso olhar?


Erik Kessels - 24 hours in photos (2011)


A era digital permite uma nova forma de se relacionar com as imagens que, sim, gera a sensação do afogamento, de se estar perdido diante da profusão de bilhões de novas imagens produzidas diariamente. Mas ao menos agora posso aceder a imagens através de imagens, acessar acervos que não estão próximos e identificar fontes e autorias que não conheceria estando num determinado contexto.


Faltam ainda ampliar-se as fontes de referência, aumentar as possibilidades narrativas, decolonizar os modos de busca e acesso às informações. Problemáticas enraizadas que ressoam no fazer docente dos arte/educadores, pelas práticas construídas na formação e ampliação de repertório. Um exercício ainda em construção, de mergulhar nas montanhas de imagens inacessíveis e difíceis de acessar, mesmo depois da era Google.




sobre a autora:

Julia Rocha é professora da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo - NAVEES e do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES). Doutora em Educação Artística pela Universidade do Porto, Mestre em Artes e Educação pela Universidade Estadual Paulista e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Realiza pesquisa sobre o ensino da arte na contemporaneidade, mediação cultural, relações entre museus e escolas, avaliação de propostas educativas no campo das artes visuais e formação de professores.




referências:

FONTCUBERTA, Joan. La furia de las imágenes: Notas sobre la postfotografía. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 2016.

KESSELS, Erik. 24 hours in photos. Disponível em: <https://www.erikkessels.com/24hrs-in-photos>. Acesso em: 10 Jul. 2023.

ROCHA, Julia; SOUZA, Any Karoliny Wutke. Decolonialidade versus algoritmo: formação e ampliação do repertório imagético dos arte/educadores. 798 Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 8, n. 3, p. 793-811, set./dez. 2021. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/gearte

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