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entrevista João Paulo Baliscei

João Paulo Baliscei é Doutor em Educação (2018) pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Maringá com estudos na Facultad de Bellas Artes/Universitat de Barcelona, Espanha. Mestre em Educação (2014) pela Universidade Estadual de Maringá; Especialista em Arte-Educação (2010) e Educação Especial (2011) pelo Instituto de Estudos Avançados e Pós-Graduação; e Graduado em Artes Visuais pelo Centro Universitário de Maringá (2009). É professor no curso de Artes Visuais na Universidade Estadual de Maringá; Coordenador do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens - ARTEI; e artista visual com produções que versam sobre gênero e infância. Desenvolve pesquisas sobre Educação, Arte/ Ensino de Arte; Estudos Culturais; Estudos da Cultura Visual; Visualidades; Gênero e Masculinidades. É autor dos livros: “PROVOQUE: cultura visual, masculinidades e ensino de Artes Visuais” (2020), “A vida de um Chuveirando” (2021) e “Não se nasce azul ou rosa, torna-se” (2021).


Nessa entrevista o leitor poderá conhecer um pouco mais sobre sua pesquisa sobre gênero, sexualidade e educação, suas publicações e sua produção artística.





Ana Carolina Pimentel: Gostaria de começar partir do livro “A vida de um Chuveirando”, que me marcou muito e tem sido uma indicação para todos desde que conheci. Seria importante começar sabendo como que foi seu processo de escrita e criação. Quais são os efeitos que você tem visto acontecer desde o lançamento do livro? Quais são as respostas e as percepções dos leitores?


João Paulo Baliscei: Então, Ana, primeiro eu agradeço pela sua sensibilidade e pela sua percepção e identificação com a história “A Vida de um Chuveirando”. Vou começar falando sobre o pré-lançamento. Essa é uma história antiga, que eu tenho rascunhada desde 2009, que foi quando eu conheci o Vinícius, meu marido. Na ocasião eu era religioso, participava de renovação carismática e não me via ou não conseguia me apresentar como uma pessoa LGBT. Todavia, envolvido nesse relacionamento, criei coragem. Só que como me faltavam palavras e referências, falei “Vou recorrer a metáforas”. Para explicar para o meu pai, para a minha mãe, para os meus amigos mais próximos e para mim mesmo, eu criei o Chuveirando. Com o passar do tempo, a vida foi me levando pra outros lugares. Eu sou professor Universitário desde 2012 e em um determinado momento, eu levei essa versão que eu tenho esboçada, que é mais artesanal, para as minhas turmas, porque nós estávamos trabalhando com direção de personagens. Como no curso de Artes Visuais há uma quantidade de alunos LGBTs muito grande e os que não são LGBTs são muito inteligentes ao ponto de conseguir entender isso sem problema, levei o Chuveirando e eles falaram “Professor, você tem que publicar esse material”. Nesse momento eu senti que mesmo sendo uma coisa minha, que me ajudou, poderia ajudar outras pessoas.

Assim, no ano de 2019 inscrevi o livro para concorrer ao Prêmio Aniceto Matti, promovido pela Prefeitura de Maringá, que contempla projetos artísticos, de artes visuais, dança e música. Passou em primeiro lugar e o processo foi muito feroz. Eu tinha um ano para desenvolver o projeto, mas em 3 meses ele já estava pronto! Eu redesenhei o livro inteiro, diagramei e atualizei a história. Por fim, resultou em 1584 livros impressos, incluindo algumas versões em braille. A distribuição é gratuita, eu distribuí em escolas da rede municipal e da rede estadual, fiz quatro eventos de lançamento e neles foi muito bonito ver como as pessoas faziam fila para ganharem um exemplar. Nesse processo eu atendi a importância do Chuveirando, porque conversei com muitas pessoas emocionadas com a história. Ouvi das pessoas: “Ah, eu vi o seu livro e vim atrás porque eu tenho um filho que tem cabelo grande e na escola sofre muito preconceito”, “Olha, trabalhei com seu livro pra uma turma de alunos adultos surdos e perguntei o que significa ter nuvem: ter nuvem é ser surdo”. Várias pessoas me escreveram emocionadas, contando histórias, foi um momento muito bonito. Eis que vem a parte complicada.


A última etapa do projeto era fazer uma oficina de contação de histórias. Como era um projeto eu recebi um prêmio da Prefeitura pensei que seria uma oportunidade de incluir as minhas orientandas num trabalho remunerado. Convidei duas estudantes, que são heterossexuais, para que contassem a história para um grupo de crianças cujos pais e mães as inscreveriam na oficina. Ao final, todos fariam uma atividade artística a partir da contação da história do personagem. Todavia, aqui em Maringá, onde eu resido, estamos vivendo um momento de muito embate e retrocesso, como no Brasil inteiro. Aqui nós estamos com alguns vereadores - uma Vereadora e um Vereador - bastante conservadores, que levam essas pautas para a Câmara. Como eles prestam oposição a Prefeitura, ficam buscando projetos para contrapor. No processo de divulgação a oficina tinha sido anunciada em um perfil de conteúdo LGBT de um amigo, afinal de contas famílias LGBTs também têm crianças, né? Isso foi um prato cheio pra que esse Vereador e essa Vereadora espalhassem fake news de que a Prefeitura de Maringá estava contratando um homem gay, que vem de fora, para dar uma oficina de sexualização para crianças para transformá-las em homossexuais.


Isso foi um susto, porque no dia eu estava dando aula e meu celular vibrava, vibrava, vibrava. As pessoas estavam dizendo “João, você está vendo o que está acontecendo?” Um Vereador específico fez uma divulgação na rede social dele, pegando uma live de lançamento do Chuveirando, recortando trechos específicos onde eu me apresentava como gay - o que não tem problema algum - e da maneira como ele montou, dá a impressão que o personagem é um personagem gay - o que também não teria problema nenhum. A questão foi que ele desconsiderou o fato de eu também ser Licenciado em Artes Visuais, trabalhar com educação desde 2009, ser Mestre e Doutor em Educação, ter mais de 50 artigos publicados na área de gênero, educação e sexualidade. Ele desconsiderou tudo isso e foi nesse momento que em Maringá se instaurou um movimento de fake news, de terror.


Esse processo, Ana, foi muito interessante porque as pessoas reagiram, houve um movimento contrário muito bonito. As pessoas se movimentaram, se mobilizaram, fizeram postagens, deixaram depoimentos. A Secretaria da Cultura saiu em minha defesa, num movimento muito bonito de reação. Pensando na perspectiva do trabalho foi positivo, porque ele se tornou mais conhecido. Como muitas pessoas me procuraram querendo o livro, o projeto não acabava nunca. Houve uma reação dos meus alunos, da classe artística de Maringá, das pessoas LGBTs, das pessoas que não são LGBTs mas se identificaram com a história. No final das contas, as oficinas com as crianças aconteceram e deram um trabalho danado, porque em todas as oficinas tivemos três, quatro, cinco pessoas em frente, vestidas de amarelo e verde, com megafones e bandeirinha do Brasil e cartazes, tentando impedi-las de acontecer. Lógico que é tudo um jogo de xadrez, em que o problema não sou eu, mas eu sou uma oportunidade de atacar, não só a Prefeitura, como as questões LGBTs que tanto ameaçam a família tradicional brasileira. Assim, a história está dando pano pra manga e eu fico feliz com essa repercussão, porque ela tem sido muito intensa.


ACP: Eu imaginava que o livro teria impactado as pessoas, mas foi por diferentes perspectivas do que pensava, infelizmente. Seguindo nessa linha e pensando no que impulsionou a escrita: qual era a sua relação com os produtos da cultura visual que eram limitados em termos de gênero? Como você lida com isso na sua prática docente e artística?


JPB: Ana, eu fui uma criança muito feliz, com muito acesso a brinquedos e imagens. Eu não me recordo de nenhuma ocasião em que a minha família me repreendeu por gostar de algo que não fosse endereçado às masculinidades. Todavia, eu sabia que era equivocado, não me lembro quem me ensinou que não seria adequado que eu pintasse as minhas unhas, ou que eu tivesse meu cabelo longo, ou que eu brincasse de boneca. Eu não me recordo de situações específicas em que eu fui repreendido, mas essa repreensão aconteceu. Talvez um olhar, não sei, porque a gente não consegue capturar isso.


Conforme fui crescendo, me tornando jovem, me tornando adulto e me identificando como um homem gay, percebi que eu poderia ser um pouco mais feliz nesse ponto. Eu vou me explicar: talvez homens heterossexuais queiram um fone como esse [mostrando fone rosa], mas eles não adquirem porque um fone como esse vai colocar em dúvida a sua heterossexualidade. No meu caso, como eu já sou gay mesmo, não tenho porque não usar. Então, por exemplo, eu não uso cabelo longo porque eu não quero usar cabelo longo, não porque o cabelo longo vai comprometer a minha masculinidade. Mas, em contrapartida, eu gosto de pintar as unhas, de usar anéis, de usar brincos. O fato de eu celebrar a minha identidade como um gay, me permite acessar artefatos da cultura visual que outros homens evitariam, pra que eles não tivessem a sua sexualidade sob suspeita. No meu trabalho isso recentemente tem reaparecido com a cor rosa. Há uns 2 ou 3 anos eu tenho me dado conta da maneira como eu gosto dessa cor e comecei a consumi-la de maneira mais intencional.


A minha mãe e meu pai contam histórias de que quando era muito criança, muito novo, 3 ou 4 anos, eu pedia muito por coisas na cor rosa e eles me davam, assim, com uma certa suspeita. Pensavam: “Se a gente proibir vai dar mais curiosidade, mas se a gente der talvez a gente incentive. O que fazer?”. Meu pai e minha mãe me disseram que por conta dessa demanda acabaram me levando num psicólogo, pra perguntar o que fazer. O psicólogo fez algumas perguntas pra eles, que numa conversa decidiram “Ah não, se o João Paulo for um homem gay quando ele crescer, tudo bem, né? Não vamos dar continuidade”. E isso tem aparecido e apareceu no meu trabalho artístico.



Nesse processo de lembranças e pesquisa eu escrevi um texto que resultou no livro “Não se nasce azul ou rosa, torna-se”. Eu faço uma abordagem da cor azul e da rosa, vinculadas aos artefatos da cultura visual. Analiso porque que os meninos e homens têm tanto medo assim de usar essa cor, de gostar dessa cor, ou mesmo de ver essa cor. Eu apresento alguns estudos cromáticos realizados por outras pesquisadoras, como a alemã Eva Heller, que disse que muitos homens dizem não saber distinguir a cor rosa da cor vermelha, como se perceber o rosa fosse um grande problema. No livro eu me dedico a fazer uma pesquisa histórica, me perguntando de onde que vem esse medo do rosa, buscando entender porque o azul é vinculado como uma cor predominantemente, indiscutivelmente masculina. No Chuveirando isso aparece de uma forma intencional, uma vez que o livro é todo azul e rosa.



ACP: Seus trabalhos nos provocam a pensar nessa divisão de brinquedos de meninos e meninas, com brinquedos azuis e rosas separados por gênero. Para você, que papel esses brinquedos têm na formação das crianças e dos adolescentes?


JPB: Eu trabalho com um conceito importante pra quem estuda cultura visual, que é o de pedagogias culturais. O conceito de pedagogia cultural é de um casal estadunidense, Shirley Steinberg e Joe Kincheloe e no Brasil é trabalhado por Marisa Vorraber Costa e Paula Deporte de Andrade. Esse conceito chama atenção para os aspectos pedagógicos dos artefatos da cultura visual, pensando que a escola ensina, sim, a escola tem conteúdos, mas a maneira a partir das quais a gente aprende não está restrita à escola. Para além das pedagogias escolares temos as pedagogias culturais: os brinquedos, os materiais, as bolsas, os cadernos, as propagandas, o cinema, a televisão, a moda, a publicidade, o design, os livros, as músicas, os parques de diversões. A gente percebe que todos esses artefatos são generificados e isso faz com que a gente internalize, ou melhor, que a gente aprenda que homens e mulheres são diferentes.


Por exemplo, não há um iogurte endereçado à pessoas que usam óculos e outro iogurte para pessoas que não usam óculos. Alguém diria “Mas faz diferença assim? As pessoas usam óculos, o que o iogurte tem a ver?”. Não existe um perfume para pessoas magras e o perfume para pessoas gordas. Os restaurantes não cobram valores diferentes para entrada e por consumo para refeições de pessoas com cabelo longo e pessoas com cabelo curto. Mas por que que cobram para homens e para mulheres? Por que tem um perfume pra homens e mulheres? Por que têm iogurtes para crianças meninos e pra meninas? De tanta insistência em torno disso a gente acaba acreditando nas diferenças. Esse é um conceito que é muito importante, porque chama atenção das questões educativas que atravessam esses artefatos da cultura visual.



ACP: Sim, isso aparece na cultura visual, tal como no chá revelação e é reverberado dentro da escola. Sinto que isso acontece não somente por conta das imagens, mas também pelo fato da escola ainda ter pouca representatividade entre os professores, os diretores, os funcionários. Você concorda com isso? Você acha que ainda encontramos pouca representatividade no ambiente escolar? Como esses corpos dissidentes, pessoas com gêneros não binários ou sujeitos trans ocupam o espaço escolar? Como você acha que eles deveriam ocupar?


JPB: A minha imbricação é a formação de professores. Eu concordo com a sua frase inicial, de que os estereótipos de gênero existem e a minha birra é que a escola reproduz e fortalece isso. Eu até entenderia, que as bonecas fossem generificadas, que os brinquedos, as cores, a indústria cultural e o cinema generificassem as coisas, mas a escola poderia dar uma resposta um pouco mais complexa. Ela poderia dar uma alternativa, já que ela é tão preocupada assim com os direitos humanos, com a saúde emocional, com o desenvolvimento dos alunos. A minha implicância é que a escola presta manutenção a isso. Talvez nós encontremos até mais estereótipos no espaço escola do que numa loja de brinquedos.


Essa uma questão complexa, porque no Brasil a educação não é valorizada, a profissão docente não é valorizada. Temos que pensar em quem são esses sujeitos que ocupam as cadeiras de poder na educação. Costumam ser mulheres, vindas de famílias pobres, de famílias simples, que casaram muito cedo e que às vezes viram no casamento uma alternativa, um escape, uma maneira de fugir de uma família opressora, de um pai muito duro, de uma mãe muito rígida. As professoras, de modo geral, têm essa visão muito dicotômica e muito generificada da infância. Só que isso tem a ver com a trajetória delas. Aqui no curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá (eu não atuo no curso hoje, mas já trabalhei) o perfil das estudantes eram meninas, mulheres muito novas, vindas de um contexto religioso muito intenso, muito rígido, pouco flexível, então inevitavelmente isso acaba repercutindo na atuação profissional delas.


Eu conversei recentemente com uma amiga que é professora da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, também da área das Artes Visuais, e ela compartilhou comigo que lá as igrejas evangélicas convidam meninas e mulheres a se matricularem no vestibular de Pedagogia. Eles pagam a inscrição delas, porque têm interesse que essas mulheres ocupem um espaço de pedagogas como uma prática colonizadora. Assim, a gente cola a educação à doutrinação religiosa. É como se fosse uma mão na roda para as igrejas evangélicas e católicas que mulheres ocupassem esses espaços que poderiam ser científicos, porque poderiam ser uma espécie de comunicadoras. Daí você me pergunta das pessoas LGBTs que ocupam esses espaços. É um movimento que eu acho que sempre aconteceu. As pessoas LGBT sempre existiram, elas passaram pelas escolas. Eu passei, você passou e a gente sabe como que a gente passou. A gente passou porque, no meu caso, a minha homossexualidade não era visível. Inclusive a minha passagem pela escola acarretou em várias marcas, em muitas chagas na minha identidade sexual. Hoje eu percebo que essas pessoas estão na escola, mas que elas não necessariamente precisam silenciar as suas sexualidades. Só que, infelizmente, elas ainda não são parabenizadas por isso, pelo contrário, são agredidas.


Já estou finalizando a minha resposta, deixa eu só te indicar um material. Eu não sei se você conhece o trabalho da Thamirys Nunes. A Thamirys é uma mulher cisgênero de Curitiba, relativamente jovem, e eu participei de uma palestra dela que me fez tremer. Eu tremia porque me tocou de um jeito muito forte. A Thamirys Nunes tem uma filha trans, a Agatha, que tem cinco, seis anos. Ela contou numa palestra que deu pro Grupo de Pesquisa que eu coordeno, o ARTEI, como que foi esse processo de idealizar um menino, de socializar, de celebrar a vinda de um menino e usar os artefatos da cultura visual que demarcavam esse papel até que teve uma festa de aniversário em que a Agatha, quando ainda era socializada como menino, queria que fosse com a temática de unicórnio. A festa era de três anos e a mãe falou “Como que vai ter uma festa de unicórnio? Não é possível. Eu não vou poder contratar fantasias e pinturas”, porque senão, o filho (ainda socializado como menino) vai estar fantasiado de vestido e vai gerar toda uma conversa. “Já que não dá pra ser unicórnio como ele quer e não da pra ser o Batman como nós queremos, vamos pensar em algo neutro: O Mickey”. Assim, na festa de aniversário a criança chorou e ficou muito triste, perguntando “Mãe, onde está a Margarida, onde está a Minnie?” E a resposta era só: “Ah, elas não vieram”. Não vieram intencionalmente, não é?


Thamirys escreveu o livro “Minha criança trans”, onde transcreve toda essa dificuldade. Porque quando nós falamos de transexualidade, a gente imagina um adulto ou uma adulta e esquece que esse indivíduo foi uma criança. A Thamirys toca nesse assunto, que é muito delicado, da criança trans. A história é muito linda, mas por que eu estou mencionando ela? Porque ela diz que foi muito difícil viver um luto do Bento para comemorar o nascimento da Agatha, mas que o mais complexo foi que o último resquício do Bento que existia na casa era o uniforme escolar. Para eles era a coisa mais difícil de transicionar, pensar nessa criança no espaço da escola. Na família foi muito difícil, mas eles conseguiram. No bairro foi muito difícil, mas conseguiriam. O último fantasma do Bento naquela casa foi o uniforme no varal. Me pareceu muito emblemático que a última parte, o único espaço que aquela criança transsexual não poderia ser feliz, era na escola. Isso daria um trabalho bem legal.



ACP: Obrigada pela indicação, eu chego a me emocionar de escutar esses relatos. Sinto que realmente a escola é um espaço muito dúbio e controverso.

Pensando no diálogo do meu objeto de pesquisa com os seus escritos, estou investigando essa construção dos estereótipos de gênero nas revistas adolescentes da década passada, período em que eu estava na escola, refletindo sobre os artefatos visuais e a construção da minha identidade durante a adolescência. Na retomada da leitura dessas revistas, identifiquei que muitos dos discursos seriam hoje inaceitáveis por adolescentes de uma turma de ensino médio ou fundamental, por exemplo. Você consegue notar diferenças nos estudantes que estão na escola hoje em relação à discussão de gênero e sexualidade, comparando com a sua própria vivencia escolar?


JPB: Sim, eu acho que hoje, por uma questão geracional e de luta - muitas das conquistas do movimento feminista -, nós usufruímos de outro panorama. Pensando em pessoas mais velhas que eu, em gerações passadas como a minha, em épocas como a do meu pai, por exemplo, a gente não via pessoas LGBTs e era como se elas não existissem. Já na minha geração víamos essas pessoas, mas elas eram motivos de chacota. Eu tenho 32 anos, então na minha infância eu olhava a Vera Verão e eu temia porque eu sabia que as pessoas me chamavam daquilo que ela era. Mas eu não era como ela. Eu não achava ela tão ruim, pelo contrário, eu achava ela linda. Havia também no Zorra Total alguns quadros que tinham o Lúcio Mauro e o Lúcio Mauro Filho que possuíam jeitos estereotipados de falar e gritar. Ou seja, essas pessoas existiam, mas elas eram motivo de chacota.


Hoje eu percebo que as novas gerações estão colhendo frutos das conquistas das gerações passadas. Essas novas gerações já possuem um pouco mais de força porque não temos apenas a Vera Verão, temos a Ana Carolina que é graduanda de um curso de ensino superior, que se apresenta como mulher lésbica, que ninguém ri dela e que é maravilhosa. A gente já tem referências positivas, que não são motivos de piada. Eu acho que os jovens e as jovens já têm com quem se identificar, já conseguem perceber muito cedo que ser LGBT não é ruim, é maravilhoso! Porque na minha adolescência, se bem me recordo, eu pensava que morreria muito cedo. No meu entendimento, eu achava que eu perderia a virgindade lá pelos dezoito anos e pensava que eu morreria antes dos 18 anos, pelo fato de não querer enfrentar isso como se fosse uma grande maldição ser homossexual. Lendo livros de homens gays eu encontrei pelo menos em quatro deles essa mesma sensação, esse desejo de morrer antes dos dezoito anos. Talvez a sua geração não tenha sofrido isso. As gerações de agora já percebem coisas positivas, eles analisam: “O professor João é gay e parece que está super bem, não é ruim. Imagina, ele é professor universitário, não é?”. Existem essas referências positivas. A questão é que se de um lado temos jovens mais abertos e mais corajosos para celebrar a sua homossexualidade, em contrapartida também temos os jovens mais corajosos e mais sem vergonha para celebrar a sua homofobia. Nós estamos num período de coexistência de opostos, de radicais, por conta das bolhas da internet.



ACP: Essa questão que você cita do medo dos dezoito anos e da maturidade sexual me parece algo bem corriqueiro por experiência própria e do meu ciclo de convivência LGBT. Eu também me lembro de pensar como “teria que casar com um menino”, como se fosse algo ruim.


JPB: É isso Ana, desde muito jovens temos que nos preocupar com coisas que são humanamente impossíveis para as crianças pensarem. Hoje eu acho que as pessoas LGBT, as mulheres e as pessoas negras são super-heróis. Eu nunca precisei pensar a respeito da minha cor. Então as pessoas negras são muito mais inteligentes do que eu. Porque desde muito cedo elas percebem coisas que eu com 33 anos nunca precisei perceber. Quando eu sofri essa situação de homofobia citada anteriormente, com o lançamento d’“A Vida de um Chuveirando” em Maringá, eu pensei que era uma grande sacanagem. Na minha percepção eu tinha feito esse projeto, intacto, não dava pra falar nada de ruim a respeito dele, até fiz muito mais do que eu me propus. Só que eu fui julgado pela minha sexualidade, não foi por outra coisa. Sendo assim, eu parei pra pensar que talvez seja dessa forma que vocês mulheres sintam. É um ônus que a gente tem que carregar pelo preconceito que a sociedade instituiu. No caso da sexualidade, eu consigo não me mostrar homossexual ou tentar dar a impressão de ser heterossexual quando me convém. Mas como que as mulheres vão disfarçar que são mulheres? Como que pessoas negras vão disfarçar que são negras?



ACP: Essa sua última fala até respondeu parte da próxima pergunta que seria sobre o seu processo enquanto adolescente. Você acredita que se no seu repertório visual e cultural tivesse sido abordado com mais artistas LGBT na TV, na moda, nos produtos de beleza, eles formariam pautas diferentes para serem discutidas? Você acredita que esses produtos da cultura visual poderiam formar outro repertório se eles tivessem abordado o conteúdo LGBT como é atualmente?

Eu falo isso porque hoje temos a Pabllo Vittar, por exemplo, na televisão e em grandes campanhas publicitárias e as crianças têm a chance de ter contato com essas referências, como você disse anteriormente, vistas de forma mais positiva.


JPB: Certamente, Ana. Tem uma situação que exemplifica isso. Eu não sou uma pessoa muito ligada a cheiros, não os diferencio muito. Por isso, desde criança eu nunca gostei de perfume e ir numa perfumaria não era funcional, porque não fazia muita diferença, eu achava todos cheirosos. Eu me recordo que depois de adulto, em 2014 ou 2015, o Boticário lançou uma campanha que se chamava “Toda forma de amor”, que consistia em uma propaganda com a música de mesmo nome do Lulu Santos. Essa propaganda mostrava várias pessoas, em recortes, comprando presentes umas para as outras. Era uma propaganda referente ao dia dos namorados, então mostrava um homem jovem e uma mulher jovem, um homem negro e uma mulher negra, um homem idoso e uma mulher idosa e no final as combinações dessas trocas de presentes eram muito inusitadas. A mulher idosa dava o presente pra um homem jovem. O homem negro dava o presente para a mulher branca. E um homem dava o presente para outro homem. Pela primeira vez eu me vi representado. E me recordo que naquele ano eu fui em uma das lojas Boticário e comprei o kit para presentear o meu marido nesta data, ainda que eu não goste muito de perfumes. Nessa mesma época, referente a esta campanha, surgiu a discussão sobre o Pink Money, mas eu dei e daria o dinheiro para essa empresa porque seria bem melhor do que dá-lo a uma empresa homofóbica. Eu escrevi um artigo que se chama “Toda forma de amor”, analisando essa publicidade com a professora e amiga que hoje atua na Universidade Federal de Sergipe. Acho que os artefatos da cultura visual formam público, formam identidades.


Durante a minha infância e a minha adolescência, da mesma forma que foram me ensinando português, matemática e práticas cristãs, foram me ensinando a ser homofóbico. Embora eu tenha vivido a minha sexualidade, a homofobia ainda estava ali, enraizada. Diferente das pessoas heterossexuais, que começam a fazer planos pra si muito jovens, eu acredito que pessoas LGBT têm uma grande desvantagem com relação ao tempo. Porque começamos a pensar e fazer planos pra nós mesmos e a perceber que isso é possível, com vinte anos. E esses outros vinte anos que me foram roubados, onde eu precisei entrar numa escolinha de futebol, namorar meninas? Quem me devolve esses anos? Concluindo, certamente se eu tivesse essas referências esse orgulho viria antes e talvez isso seja possível hoje. Vermos jovens já orgulhosos com as bandeiras que eu só levantei com mais de vinte anos.



ACP: Sim, existe esse apagamento de um tempo da vida. Percebemos que essa recusa tem sido demarcada também por parte do governo e dos pais de muitas crianças em abordar esses temas de gênero e sexualidade nas escolas. De que formas os educadores podem resistir a isso? Como podem ser feitas as discussões sobre os estereótipos de gênero na sala de aula?


JPB: Primeiro os educadores e as educadoras têm que tomar consciência disso, pois acho que por uma questão religiosa e de homofobia, os educadores de modo geral possuem o mesmo medo do governo com relação a isso. Por exemplo, em uma das conversas com um dos vereadores que são bolsonaristas ele afirmou que gostava do meu trabalho, mas era contra trabalhar sexualidade com crianças com menos de doze anos. Eu afirmei que o livro não se tratava de sexualidade e que não existia sequer par romântico citado. Ele replicou veemente que é contra trabalhar sexualidade com crianças pequenas e eu disse que concordava com ele, que também era contra, mas isso deveria ser sobre todas as sexualidades. Por exemplo, a Bela Adormecida em sua história beija um príncipe e isso é sexualidade. A heterossexualidade. Eu passei por toda a educação infantil, ensino fundamental e ensino médio na escola, num total de dezessete anos, e em todos os anos houve festa junina com crianças dançando de mãos dadas com seus pares e até simulando um casamento.


Logo, somos contra a sexualização da infância? Sim. Mas de toda sexualização. Porque eu fui sexualizado para ser heterossexual. Não significa que nasci heterossexual e o mundo me corrompeu. Pelo contrário, eu fui um menino gay que o mundo tentou corromper com a heterossexualidade. Retomando, os professores têm que tomar consciência sobre isso. Nesse ponto acho que a formação continuada é muito importante. Formação inicial também, mas entendo que muitas das vezes não dá tempo. Em um curso de Licenciatura em Artes Visuais, de Pedagogia ou de Letras, talvez isso não apareça na formação inicial. Políticas públicas também são necessárias. Porque todo resquício legal que nós tínhamos que incentivavam o trabalho com gênero e sexualidade está sendo exterminado. Identificava-se no ano de 2017 - quando foram feitos os planos municipais e nacionais de educação - a palavra gênero na expressão “gênero alimentício” compondo o texto do currículo e se retirava, “Porque o gênero é aquele negócio”. “Aqui apareceu a palavra transdisciplinar, vamos tirar porque se é trans tem a ver com a travesti, vamos tirar”. Logo, para que educadores possam trabalhar, primeiro tem de haver políticas públicas, até porque nós temos professores muito bons e com um trabalho com uma boa argumentação de gênero, além de professores LGBT que são incríveis e vem sendo censurados. Por que? Porque não existem políticas públicas que garantam o direito de falar sobre outras sexualidades que não a heterossexualidade.


Além de não termos políticas públicas que nos incentivem e falem sobre a obrigatoriedade dos professores lerem e abordarem o assunto - porque para falarmos sobre isso deve haver muita leitura e estudo -, há políticas públicas que censuram aqueles que leem e que se informam sem a devida remuneração. O projeto Escola Sem Partido, por exemplo, censura, intimida e constrange. Essa falácia da ideologia de gênero provoca medo, provoca terror naqueles que ainda têm um pinguinho de coragem, de conhecimento, pra ir contra a corrente, que é muito difícil.



ACP: Sim, certamente. E pra ir contra essa corrente, quais os artistas contemporâneos ou produtos da cultura visual você recomenda pra serem trabalhados na sala de aula?


JPB: Eu gosto de artefatos em que essas questões de diferenças não são tão literais. Eu tenho aqui em casa vários livros, por exemplo, “Olivia Tem Dois Papais”, ou “Coisas de Menino, ou Coisas de Menina?”. Eu tenho vários livros que falam das questões das masculinidades e das feminilidades. Gosto de livros como “A Vida de um Chuveirando”, que falam de diferença e que o leitor preenche a diferença conforme for a situação. Chuveirando pode ser um menino gay, pode ser um menino trans, pode ser um menino negro, pode ser um menino pobre, pode ser um menino surdo, pode ser um menino gordo, que mora com a avó, pode ser um menino que tem a voz fina, pode ser um menino que usa óculos, enfim. Eu gosto muito de “Luca”, que é uma animação da Pixar e da Disney. Gosto muito de “Float”, um curta metragem da Pixar, que está sendo analisado por uma das minhas orientandas, e trata de uma metáfora de uma criança que flutua e seu pai tenta segurá-la para baixo. Tem um que é mais voltado aos adolescentes e se chama “Arlindo”. É uma história em quadrinhos relativamente grande, toda em rosa e em amarelo fluorescente, com uma ilustração linda. Consiste em um menino gay que viveu a infância nos anos 2000. Na história em quadrinhos ele entra no MSN, ele ouve músicas de Sandy & Junior, Rouge e é toda uma questão em torno de uma geração antes dos celulares.


A respeito de brinquedos, eu acompanho a Mattel e vejo que as Barbies que a empresa vem lançando têm uma variação de formas pensando em quadril, cintura, cabelo e em tom de pele. Gosto também daquele jogo "Cara a Cara”, porque tem vários personagens, então talvez a coisa mais óbvia é perguntar assim se o personagem a ser adivinhado é homem ou é mulher, mas também possuem outras características físicas importantes, que nos permitem chamar a atenção pra outras diferenças para além do gênero. A questão em si não é muito o artefato, mas sim a abordagem que é dada. Porque o jogo “Cara a Cara” na mão de uma professora sexista viraria menino contra menina.



ACP: Você tem uma produção autoral como artista, como é que enxerga o seu trabalho como artista indo para as escolas?


JPB: A pergunta é bem interessante porque por conta da pandemia e das várias atividades virtuais que temos desenvolvido conseguimos divulgar mais o nosso trabalho e isso tem me instigado. Já houveram relatos de duas ou três situações em que professoras de São Paulo levaram trabalhos meus como artista para as escolas com a intenção de problematizar os aspectos generificados dos brinquedos. Elas imprimiram imagens em que eu pinto a Barbie de azul e o Ken de rosa e entregaram caminhõezinhos e bonecas para que as crianças pintassem. Acho que é uma via talvez um pouco mais eficiente de falarmos sobre as questões de gênero sem apresentá-las como: “Agora nós vamos falar sobre questões de gênero”. Não precisamos apresentar, apenas fazer. Porque quando as pessoas promovem a heterossexualidade ou quando as pessoas promovem a branquitude ninguém anuncia. Então talvez não precisemos fazer o inverso. Sugiro que ao invés de falar que irão apresentar artistas LGBT ou que irão problematizam as questões de gênero, apenas apresente e as pessoas perceberão. Até porque a igreja católica - eu atribuo isso a igreja católica porque a expressão “ideologia de gênero” foi uma invenção da igreja católica que foi apropriada e quem vigia isso são as igrejas neopentecostais - conseguiu criar um grande fantasma para a palavra gênero. Eu tive orientandas que possuíam certo receio em fazer trabalhos sobre questões de gênero ou de se apresentar como feministas, porque elas sabiam que atrelado a isso vinham estereótipos. Eles foram eficientes em criar esse grande fantasma.


ACP: Sim, temos isso internalizado e ainda precisa de muito trabalho para rever esse pensamento. Muito obrigada pelo seu trabalho e pela criação de material para que façamos esse trabalho de resistência e revisão dos valores intrometidos na educação.


JPB: Eu que agradeço pela oportunidade de falar sobre o trabalho e pela possibilidade de troca!





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