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escrevendo memórias

Relato da oficina “Exercícios para se lembrar”, com Geovanni Lima, realizada em 26 de julho de 2021


Desde o dia 27 de julho de 2021, se passo pela portaria do meu prédio, confiro constantemente se chegou algo novo na caixa de correspondências. Diferente do que fazia antes, quando somente no final do mês esperava pela chegada dos boletos ou contas que ainda recebo fisicamente. O que mudou nesse dia foi que agora aguardo a chegada de uma carta pelo correio, advinda das trocas e partilhas construídas na oficina Exercícios para se lembrar, realizada por Geovanni Lima no dia anterior do início da minha espera ansiosa pela chegada da correspondência.


Ainda que soasse impossível receber algo com tamanha urgência, algumas horas depois das trocas estabelecidas na oficina, a possibilidade de ter algo chegando que não seja uma conta agendada ou um compra realizada reativou uma sensação nostálgica de receber correspondências devidamente marcadas com selos vindas de outras cidades. A substituição das trocas de textos manuscritos e devidamente endereçados as nossas residências pelo constante e frenético ato de se comunicar pela ação de enviar mensagem via redes sociais redimensionou o modo como nos relacionamos com a distância. Incorporando vantagens como o imediatismo da comunicação e o enriquecimento das conversas com outras mídias, como fotos, vídeos, gifs e figurinhas, as redes sociais tornaram obsoletas uma maneira funcional de mantermos relações.


A espera se iniciou com a oficina por conta de um dos exercícios que foram propostos por Geovanni Lima, de partilhas de histórias da infância que foram redigidas num formulário e que serão enviadas pelo proponente aleatoriamente para nossas casas, junto com um endereço de outro participante da oficina. A proposta é que as memórias sejam ressignificadas por meio de um objeto, uma escrita, uma imagem ou outro material que se desejar trocar a partir da história nostálgica do outro. Assim, receberei em minha casa uma memória de infância de outro participante, juntamente com seu endereço, para que eu possa, a partir da minha leitura da história, enviar algum objeto afetivo que o relato me faça pensar. Nas trocas de correspondências iremos reconstruir as memórias uns dos outros por meio de uma criação que surja da história.


O exercício me lembrou das correntes de livros e cartas que tínhamos nos anos 1990, com envios de objetos e correspondências via correio a partir de uma rede criada e que continuamente se ampliava. Com isso, a proposição de Geovanni reativou memórias não somente da minha infância a partir dos objetos afetivos, mas também pelo exercício de troca que praticávamos à época. Digo objetos afetivos porque esse foi, na verdade, o ponto de partida da oficina Exercícios para se lembrar. No ato da inscrição éramos orientados a trazer, para a chamada de vídeo (formato da oficina, ainda devido a necessidade de isolamento social por conta da pandemia de covid-19), um objeto afetivo, de preferência do período da infância ou adolescência.


No processo de troca das histórias sobre os objetos afetivos trazidos, surgiram cadernos, papéis de carta, acessórios e bonecas que ativaram partilhas sobre colecionismo, relações familiares e de amizade, traumas e apego emocional e fomos sendo mediados por Geovanni a pensar nesses objetos como vetores para a memória. O conceito é base da produção do artista e pesquisador, que continuamente ressignifica parte de sua história e registros visuais e textuais da infância pensando a relação das memórias com o corpo. Recriando as histórias por meio de performances, objetos e fotografias, Geovanni Lima pensa nos seus trabalhos como exercícios para reviver processos que marcaram seu corpo. Um corpo gordo, negro e gay, como o artista se descreveu, que carrega memórias das relações construídas durante a infância e a adolescência e que agora são pensadas como práticas artísticas.


Assim, conhecemos Epiderme social (2015), performance na qual o artista se posicionou de olhos vendados, no espaço urbano do centro de Vitória - local de grande fluxo de passantes - com uma série de carimbos numa mão e uma carimbeira na outra. Os carimbos continham as palavras gordo, preto, viado, sapatão, feminista e afeminado, além de um carimbo com seu próprio nome. Durante o tempo em que permaneceu na rua, passantes marcaram seu corpo com as palavras carimbadas, demarcando impressões estabelecidas a partir dos termos continuamente ouvidos pelo artista durante sua infância e adolescência. Pelo relato de Geovanni, o ato de se vendar pareceu dar aos transeuntes da rua a sensação de poder em relação às ofensas que não somente foram sendo marcadas na sua pele, mas proferidas verbalmente enquanto as pessoas realizavam a ação.

Geovanni Lima - Epiderme social (2015)


Em Branqueamento ou ação repetida de cuidar (2019) Geovanni nos conta sobre a performance em três atos onde executa ações de ferimento e cura ao próprio corpo a partir de relatos do período escolar. Primeiramente o artista utiliza de modo contínuo desodorantes em formato aerosol até o esgotamento de seis frascos. A ação lacera a pele, alérgica ao produto, recriando um processo inflamatório vivido na infância ,quando o mesmo movimento foi realizado em sala de aula, diante das contínuas ofensas que vinha sofrendo dos colegas por erroneamente associarem um mal cheiro da escola ao artista quando criança. Na sequência, o segundo ato busca amenizar as queimaduras produzidas na pele com um banho de óleos que acalmam o ardor. O terceiro ato remonta o processo de cuidado das ancestrais do artista e associam à ação da cura uma série de ervas preparadas num banho.

Geovanni Lima - Branqueamento ou ação repetida de cuidar (2019)


O reviver da experiência sofrida durante seu processo de formação identitária possibilita reconstruir as lembranças e buscar outras marcas para o corpo, fazendo da prática performática um mecanismo de ativação da memória. O mesmo acontece com sua performance mais recente, Rei da Primavera (2021), na qual o artista traja um macacão coberto de flores artificiais que recria uma experiência de negação da ocupação de um papel de destaque em celebração na escola. Vestindo a roupa e personificando o rei da primavera, o artista percorre o espaço público, presenteando pessoas com flores que carrega num cesto, buscando ativar o sentimento de pertença que lhe foi negado.

Geovanni Lima - Rei da Primavera (2021)


Nesse processo da partilha dos trabalhos do artista, tivemos a oportunidade de identificar como as memórias podem ser reativadas e ressignificadas nas práticas artísticas, pensando-as, assim como com os objetos, como um vetor para o ato de criação. Nas trocas estabelecidas entre participantes e artista pudemos identificar como memórias particulares encontram eco nas histórias coletivas, ressoando conquistas, afetos e traumas que partilhados podem ser reconstruídos. Foi o que nos propôs Geovanni Lima ao final, com a escrita das nossas histórias de infância que serão trocadas via correspondência, recriadas e novamente enviadas. Por isso desde então venho consultando periodicamente minha caixa dos correios.



sobre a autora:

Julia Rocha é professora da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo - NAVEES e do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES). Doutora em Educação Artística pela Universidade do Porto, Mestre em Artes e Educação pela Universidade Estadual Paulista e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Realiza pesquisa sobre o ensino da arte na contemporaneidade, mediação cultural, relações entre museus e escolas, avaliação de propostas educativas no campo das artes visuais e formação de professores.



referências:

www.geovannilima.com/


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