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fissuras no cis-tema

Relato do encontro “Arte e feminismo decolonial: o enfrentamento das dissidências à colonialidade de gênero", com Maíra Freitas, realizado em 5 de julho de 2021


O famoso discurso de Sojouner Truth “Não sou eu uma mulher?” nos faz refletir sobre as diferenças entre como eram tratadas mulheres brancas e negras, uma vez que mulheres negras não eram vistas como o que se concebia dentro do conceito de mulher, mas como negras e, acima de tudo, escravas. Mas o que seria uma mulher? Existe uma construção social a respeito do conceito, como demarca a famosa frase de Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se”. A vida inteira pessoas do sexo feminino são ensinadas em culturas patriarcais a desenvolverem determinados modos de agir perante a sociedade, um modo feminino de existir. Essa perspectiva foi tratada por Maíra Freitas em nosso encontro, pensando como a teoria feminista decolonial e a arte têm discutido o conceito de mulher.


E quando quem desempenha supostos ideais do que é ser mulher não possui genitália feminina? “Ela tem jeito, tem bunda, tem peito e o pau de mulher!”, diz Linn da Quebrada, na música intitulada Mulher. A sociedade hétero e cisnormativa as subjuga, as lançam os piores dos olhares e tratamentos. Em nossa sociedade, a maioria das travestis e transexuais estão expostas a situações de vulnerabilidade e violência. Muitas delas são expulsas de casa, sem perspectiva de emprego e acabam tendo nas ruas e em seu corpo a única forma de se sustentarem.


A sociedade inúmeras vezes nega a existência dessas pessoas e se recusa a admitir suas identidades, entretanto quando a artista Rosa Luz, por exemplo, em sua performance Afrontando ideias (2016) retira a camisa no meio da estação rodoviária, gerando um tumulto muito grande, a polícia aparece, interrompe e não a prende pois, segundo a artista, “Essa ação me legitimaria como mulher, e como me legitimar se o Estado não reconhece a minha existência?”.


Já Linn da Quebrada, em blasFêmea (2017), obra realizada para a faixa Mulher do álbum Pajubá, mostra a hiperssexualização que existe em torno dos corpos travestis, exibe as violências sofridas por tantas e por fim registra uma espécie de ritual de cura entre outras mulheres. Em ambas as obras, de Rosa e Linn da Quebrada, expõe-se a opressão sofrida por essas pessoas e é visível como corpos que fogem de padrões hétero e cisnormativos são tratados em um dos países mais violentos com pessoas LGBTQIA+.


Próximo ao fim do encontro, Maíra apresentou suas próprias obras em que discute questões como maternidade e sexualidade. A artista e pesquisadora aponta que ao se tornar mãe sua sexualidade imediatamente é associada pelas pessoas como a de uma mulher heterossexual. Como pontua Oyèrónké Oyěwùmí (2004, p. 5) “Parece não haver compreensão do papel de mãe independente de seus laços sexuais com um pai. Mães são, antes de tudo, esposas”, ou seja, estão sempre ligadas a uma figura masculina. Entretanto, essas mulheres podem ter optado por uma maternidade solo ou – talvez – até sejam esposas, mas de outras mulheres e isso sequer passa na mente de pessoas que reproduzem a heteronormatividade.


Em sua obra, além do questionamento da maternidade solo e heterossexualidade compulsória, Maíra comenta sobre algo como “metodologia do possível”, “metodologias outras”, onde utiliza o que possui, o que está ao seu alcance para produzir seu trabalho. E aqui voltamos ao corpo assim como em Linn e Rosa, mas agora um corpo cisgênero. Todavia, um corpo que não deixa de sofrer violências de uma sociedade patriarcal. Estamos falando de um corpo que rompe a normatividade por se relacionar com outras mulheres, um corpo que discute violência obstétrica e a violência de ser mulher em um dos países que também está no índice dos que mais cometem atos de violência contra mulheres.


Aqueles que fogem da regra sofrem todos tipos de abusos possíveis, mas se faz necessário erguer a voz e lutar pelo direito da existências desses corpos. Como criar fissuras no sistema? As existências desses corpos já as criam, basta saber quais ferramentas possibilitam com que se lute, que sejam expostas as violências, discutidas e que se garanta de fato o direito de uma vida digna. Não temos resposta, mas sabemos que os movimentos sociais, como o feminismo, durante décadas ajudaram e ajudam a conquistar direitos e possibilitar imaginários de vidas mais dignas para todos.


Todas as obras de arte aqui mencionadas expõem violências sofridas, mas se lembrarmos do fim da performance blasFemêa (2017) de Linn, onde a travesti aparece em meio a mulheres numa espécie de insurreição, assim como Rosa Luz, que também foi abraçada por mulheres na rodoviária enquanto era atacada, percebe-se no encontro e na criação de redes a potência do fortalecimento. No encontro com Maíra, mulheres participantes verbalizaram o quanto estar com outras mulheres as fortalece e as ajuda a encarar as mazelas desse mundo. É a partir do encontro de mulheres, para lutar contra as opressões sofridas, que se dá luz ao feminismo e assim muitas mudanças/conquistas ocorreram e ocorrem. Que as opressões continuem sendo expostas afim de um dia entenderem que não podem mais ocorrer, que corpos dissidentes continuem a criar fissuras no “cis-tema”, que façamos um “giro decolonial” para resistir e transcender à lógica colonial que se impõe, para que possamos enfim existir em um mundo outro, que não nos aprisione nas dicotomias necessárias para a criação do Outro; e que no caminho da mudança nenhuma de nós seja excluída da luta.



sobre a autora:

Raquel das Neves Coli é professora de artes no ensino básico da rede municipal de Cachoeiro de Itapemirim - ES. Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Foi bolsista voluntária de Iniciação Científica com o sub-projeto “Pressupostos da estética de Bertolt Brecht segundo Gerd Bornheim” (2018-2019). Se interessa por história da arte e suas intersecções com a teoria feminista. É parte do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES).



referências:

FREITAS, Maíra. Imagens dissidentes em Lynn da Quebrada: Identidade, torção e tecnologia. In: Anais do 29º Encontro da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas: Distorções; 28 de setembro a 2 de outubro de 2020; Goiânia. Goiânia: ANPAP, 2020. 

OYEWUMI, Oyèrónké. Conceituando gênero: Os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Disponível em: <https://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/oy%C3%A8r%C3%B3nk%C3%A9_oy%C4%9Bw%C3%B9m%C3%AD_-_conceitualizando_o_g%C3%AAnero._os_fundamentos_euroc%C3%AAntrico_dos_conceitos_feministas_e_o_desafio_das_epistemologias_africanas.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2021.




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