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o efeito anestésico das imagens

“A nossa relação com a dor mostra em que sociedade vivemos”. (HAN, 2021, p. 9)


Byung-Chul Han, filósofo contemporâneo que reflete sobre nosso modelo de sociedade em relação à operacionalização do trabalho, comportamento de consumo das imagens e aproximação com as tecnologias digitais, dentre outros pontos, problematiza como esse modelo opera na manutenção do neoliberalismo, implicando que os sujeitos se tornem cansados, porque somos induzidos a estar ocupados e constantemente produtivos, levados a acreditar que algum sucesso pessoal demanda sempre mais do nosso próprio esforço.


Nessa sociedade onde tudo é capitalizado, estamos sempre reféns da lógica da produtividade excessiva e não há espaço para a dor. Embora estejamos marcados pela exaustão e pelo cansaço, a dor não é algo que nos deixamos sentir, porque, segundo o autor, “dores são cifras” (HAN, 2021, p. 9). Somos condicionados a sermos dóceis perante a dor, lidar com seus efeitos como aspecto homogeneizado do corpo, que se torna algo a ser combatido.


Vivemos em uma sociedade da positividade, que busca se desonerar de toda forma de negatividade. A dor é a negatividade pura e simplesmente. Também a psicologia segue essa mudança de paradigma e passa, da psicologia negativa como “psicologia do sofrimento”, para a “psicologia positiva”, que se ocupa com o bem-estar, a felicidade e o otimismo. Pensamentos negativos devem ser evitados. Eles devem ser substituídos imediatamente por pensamentos positivos. (HAN, 2021, p. 11)


Para essa sociedade do desempenho, onde as pessoas atuam na lógica da produtividade, Han dá o nome de “sociedade paliativa”. Nela, a dor é considerada uma fraqueza, porque não é compatível com o desempenho demandado. Dor não gera likes, dor não é bonita para ser mostrada, por isso precisa ser combatida. Nesse modelo de sociedade, a dor precisa ser ignorada para abrir espaço para a positividade, pois nela reside o like; a positividade é nomeada por Han como o analgésico do presente. Distrair a dor e não lidar com seus efeitos (e medicalizá-la), uma característica dos sujeitos que convivem na sociedade paliativa, então vamos pensar em indícios dos efeitos desse conceito.


Há uma família na sala de espera do lugar onde eu trabalho, um estúdio de fotografias. Essa família é composta por pai, mãe, uma criança de uns dois anos de idade e um bebê recém-nascido, que é quem está sendo fotografado nesse dia. O ensaio demora cerca de duas horas para ser concluído e obviamente a criança mais velha está estressada. Ela pede pra ir embora, seus pais avisam que logo irão, mas esse logo nunca chega. Esse um minuto para a criança entediada parece representar um dia inteiro. O estúdio conta com algumas pelúcias, balas e brinquedos previamente preparados para atuarem como distração para períodos de espera, mas nada daquilo parece entretê-lo ou deixá-lo verdadeiramente calmo. À medida que o tempo passa, ele chora e pede para ir embora mais algumas vezes, até que seu pai finalmente cede à pressão e lhe entrega o celular.


O celular do pai acalma a criança no mesmo instante, milagrosamente. Mesmo tão novo, seu dedinho desliza pela tela com muito costume. Ele já tem a habilidade de escolher o vídeo que quer assistir, que provavelmente será uma sequência colorida de imagens com uma música alegre e se não gostar daquele, ele mesmo sabe pular para o próximo. A criança é transportada, quase como sugada pela tela do seu celular. Imediatamente se cala e se acalma, ela está imersa e anestesiada.


Quando observei a criança com o smartphone, lembrei série de fotografias Sur-Fake (2015), do fotógrafo francês Antoine Geiger, que manipula imagens de pessoas portando celulares e tablets, algumas vezes dentro do Museu do Louvre, em frente a obras de arte. A intervenção produzida na fotografia é feita de modo com que seus rostos pareçam sugados pela tela do aparelho, como que hipnotizados ou anestesiados pelas informações visuais e textuais disponíveis nos dispositivos digitais. Incluindo imagens de visitantes dentro do museu, o artista produz uma crítica sobre a interferência do mundo virtual mesmo quando estamos diante de lugares que sugerem uma contemplação real.

Antoine Geiger - Sur-fake (2015)


Era como se a analogia proposta com a série fotográfica de Geiger estivesse acontecendo bem diante dos meus olhos. A criança estava sendo sugada pela tela do celular enquanto todo seu choro e sua dor desapareciam. A partir do encontro com a tela ela não ouvia mais o que os pais falavam, não reagia às conversas que estavam acontecendo na sala e não chorou ou reclamou da passagem do tempo mais nenhuma vez.


Então será que é possível pensar que o YouTube ou outras plataformas de vídeo estão funcionando como os analgésicos do presente para as crianças? Estamos criando anestesia em formas de imagens? O celular seria uma espécie de babá eletrônica que toma conta dos filhos enquanto os pais, responsáveis (e até mesmo professores) estão ocupados?


Retomando a memória e lembrando da relação com a imagem em outros períodos, quando eu era criança a televisão tinha um efeito parecido, mas ainda éramos condicionados pelos horários da programação das emissoras, víamos desenhos em horários específicos. Agora é possível acessar o conteúdo desejado a qualquer momento (e não só novos conjuntos de personagens e histórias, como também os antigos da época em que eu era criança). A gama é muito maior e a idade do público alvo é cada vez menor. Eram comuns as narrativas populares de que a TV, já naquela época, estava deixando as crianças tontas ou que estava hipnotizando a todos. Várias teorias da conspiração giravam em torno dessas programações ou de grandes indústrias como a Disney, que supostamente tinha a intenção de capturar a mente tão inocente dos mais novos.


Hoje, o efeito é o da livre demanda: se a criança chora significa que ela está triste e a imagem na tela do celular funciona como um antidepressivo, atenuando a dor, o tédio ou a falta que a imagem representa como distração. A criança consome essas imagens que são mediadas pelos dispositivos que acessam, pensadas com códigos específicos de cores e movimentos para cada faixa etária e a repetição desses elementos pode causar o mesmo efeito que nos adultos: conformidade a partir do costume de se consumir. Ou será que eu vou me distanciar dessa criança e dizer que me sinto diferente dela diante do tédio?


Precisamos pensar que essas crianças estão ocupando espaços escolares, em períodos de horas ausentes de celulares e tablets. Esses dispositivos eletrônicos que estão sempre em livre demanda e essa digitalização da vida são responsáveis, segundo Han (2021), por reduzir cada vez mais a resistência das pessoas em geral, por anestesiar. Imaginem só o efeito dessa digitalização para dentro da comunidade escolar.


A esse respeito, Ken Robinson (2014) descreve a crise da escola na contemporaneidade diante da reprodução do modelo construído desde sua gênese e problematiza o efeito excludente que muitos estudantes sofrem diante da dificuldade dos sistemas de ensino em lidarem com o crescente panorama de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade e outras doenças crônicas relacionadas ao aprendizado que acometem os estudantes de várias faixas etárias. Esse crescente panorama é lido pela escola tradicional, como aponta Robinson, como um índice de inadequabilidade dos discentes ao modelo escolar vigente, visto que o mundo tem se transformado e cada vez mais crianças e adolescentes são estimulados pelo modelo de sociedade que Han descreve e analisa.


Em vista disso, as escolas e responsáveis muitas vezes não estão prontos para lidar com a subversão que muitas dessas crianças e adolescentes apresentam em classe e usam de medicamentos para velar esses sintomas e “corrigir” essas crianças e adolescentes, porque obviamente esses sujeitos precisam se adequar novamente ao modelo, pensarem outra vez dentro da caixa. Segundo Han (2021), apesar de estarmos medicalizando a dor constantemente e a despeito dessa busca por bem-estar e positividade, começaram a se multiplicar dores que são silenciosas.


A etiologia da dor crônica é múltipla. Rejeições, distorções e tensões em conjunturas sociais causam ou fortalecem dores crônicas. Não por último é o vazio de sentido da sociedade atual que faz as dores crônicas insuportáveis. Elas refletem a nossa sociedade esvaziada de sentido, o nosso tempo sem narrativa, no qual a vida se tornou uma sobrevivência nua. Analgésicos ou pesquisas psicológicas não conseguem fazer muito aqui. Eles apenas nos tornam cegos diante das causas socioculturais da dor. (HAN, 2021, p. 60)


Robinson (2014) ainda pontua que essas crianças estão vivendo um período intensamente estimulante, com tantos elementos que clamam por sua atenção em várias plataformas, mas estão sendo penalizadas por se distraírem. Os estudantes, assim como os demais sujeitos viventes da sociedade paliativa, também estão sofrendo com esse bombardeio de informações imagéticas e textuais, contínuas e aceleradas, disponíveis de forma massiva e acessível. Logo, o mundo fora das paredes da escola está em dissonância com o modelo educacional que se tenta implementar, ou que não se deixa modificar.


Enquanto as tecnologias geram essa anestesia, a arte tem lidado com a estesia. O contraponto é criado a partir da concepção de que a arte foi feita para ser sentida, seja sensorialmente com obras que induzem ao tato, que possuem cheiros e mexem com os sentidos, mas também conceitualmente como pensar e criticar essa sociedade da anestesia imagética. Segundo Robinson (2014), esse modelo de medicalização, punição e a forma industrial como a escola é organizada, dividindo crianças por idade e não por qualquer outro critério mais relevante que esse, mata a criatividade. A escola, segundo o autor, deveria seguir numa direção oposta dessa padronização, estimulando os pensamentos divergentes, onde o sujeito consegue ver uma série de respostas diferentes para um mesmo questionamento, como eles podem observar em muitos trabalhos de arte. Mas à medida que somos “educados” com o passar da vida escolar, passamos a nos formatar para compreender que no final há sempre uma resposta certa.


Um problema dessa sociedade paliativa, anestesiada, segundo Han (2021), é a não relação com a dor, a falta do sentir. Essa dor e esse incômodo são fundamentais para que exista crítica. “Tudo que é verdadeiro é doloroso. A sociedade paliativa é uma sociedade sem verdade, um inferno do igual” (HAN, 2021, p. 61). De acordo com o autor, a falta da dor nos deixa cegos, pois nos tornamos incapazes de lidar com a verdade.


Apenas uma relação viva, um verdadeiro um-com-o-outro, é capaz de dor. Um um-ao-lado-do-outro sem vida e funcional não sente nenhuma dor, mesmo se ele desmorona. É a dor que distingue o um-com-o-outro vivo do um-ao-lado-do-outro morto. Dor é vínculo. Quem recusa todo estado doloroso é incapaz de vínculos. Vínculos intensivos que poderiam doer são, hoje, evitados. Tudo se desenrola em uma zona de conforto paliativa. (HAN, 2021, p. 62-3)


Quando a arte não se dobra a esse movimento natural que somos condicionados, ela gera um forte estímulo, que ao contrário de cercear os sentidos, os acende, ativa. A arte confronta essas questões e as coloca sob problematização, gerando fortes estímulos que, segundo Han (2021), são necessários para que as pessoas anestesiadas voltem a ter esse sentimentos de estarem vivas. Como nós, adultos, estamos cuidando para que o efeito anestésico seja quebrado em nós e nos outros? Ou o quanto fazemos uso dessa letargia e a provocamos propositalmente?




sobre a autora:

Ana Carolina Ribeiro Pimentel é graduada em Fotografia pela Universidade de Vila Velha e atualmente cursando Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Participa do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e Arte Contemporânea (CE/UFES) com foco na linha de processos artísticos e educativos relacionados na contemporaneidade. Bolsista PIBIC CNPq (2022-2023), com desenvolvimento do projeto "Pós-fotografia e educação: O papel da leitura de imagens na aproximação com a arte contemporânea".




referências:

GEIGER, Antoine. SUR-FAKE. Site Antoine Geiger, 2015. Disponível em: <https://antoinegeiger.com/SUR-FAKE>. Acesso em: 01 Jun. 2023.

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2021.

ROBINSON, Ken. Mudando Paradigmas da Educação, Ken Robinson (legendado). Canal Marlon Machado, YouTube, 21 abr. 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yaGiz2JqS2c>. Acesso em 01 Jun. 2023.

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