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o fluxo do ensino: quem aprende com quem?

Na apresentação feita pelo tradutor Rubens Figueiredo do livro Guerra e paz, escrito entre 1863 e 1869 por Liev Tolstói, Figueiredo demarcou que além da dedicação à escrita, Tolstói também teve expressividade na área da educação, principalmente com camponeses, tendo, inclusive, publicado um livro intitulado: “Quem deve aprender a escrever com quem: as crianças camponesas devem aprender conosco ou nós, com as crianças camponesas?”. Observa-se posicionamento questionador da ideia muito presente até os dias de hoje, na qual o professor é quem deposita/transmite o aprendizado ao aluno que é visto como receptor. Nesse sentido, Tolstói abre caminho para a possibilidade do conhecimento emergir também do estudante, nesse caso específico, das crianças camponesas.


Em diálogo com essa ideia, Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido, aborda anos depois o conceito de “educação bancária”, perspectiva na qual ocorre a narração ou dissertação de conteúdos que pressupõem o narrador (nesse caso feito pelo papel do professor) e os ouvintes (alunos): “A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mas ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’, tanto melhores educandos serão”. Esse modelo de educação se basearia, para Freire, na ação de depositar, em que o professor detém o conteúdo e o transmite, enquanto o aluno faz o papel do que não sabe nada e é quem escuta, “absorve” e arquiva o ensinamento dos professores.


Esse pensamento exclui a possibilidade do ensino com base em uma troca na qual o conhecimento também parte dos alunos, nos quais esses igualmente podem partilhar seus saberes, vivências e pensamentos. Por conseguinte, para Freire quanto mais a imposição ocorra, mais os estudantes inclinam-se a aceitar essa realidade e se adaptar a esses “depósitos”. Sendo assim, em decorrência da visão bancária se “[...] anula o poder criador dos educandos ou minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade”. Essa perspectiva “satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação”. De forma crítica, Freire propõe uma educação que se encore nos saberes dos educandos, propondo o entrelaçamento de suas leituras de mundo com os objetos de conhecimento. Tal como propõe Tolstói, ao defender a ação do professor aprender com o aluno.


Pensando essas questões dentro do campo da arte, um projeto que dialoga com o mecanismo de funcionamento escolar nomeado por Paulo Freire como educação bancária é La Escuela del desencanto (2020), da artista Catalina Juramillo Quijano. Esse trabalho propõe uma reflexão sobre “a melancolia da escola”, com uma instalação de uma sala de aula escolar para crianças dentro Museo de La Tertulia. O trabalho parte de uma visão crítica a respeito do sistema educacional, convidando o espectador a adentrar no espaço configurado pela artista com propósito de causar desconforto, remetendo à sensação que a escola potencialmente pode gerar. Para tal, os elementos reconhecidos da arquitetura e espacialidade da escola são reconfigurados, com intuito de criar nostalgia melancólica aos tempos passados dos que experienciam o trabalho de arte.

Catalina Juramillo Quijano - La Escuela del desencanto (2020)


Toda a construção da sala, com suas imagens e objetos, apresenta o que alunos passaram e foram submetidos no processo que a artista considera como de controle e alienação, responsável por sufocar a imaginação. Para alcançar seu objetivo, na instalação foram inseridos elementos para causar os efeitos pretendidos nos espectadores, tal como o quadro de giz feito a partir de folhas de papel que se estendem até o chão para aludir a um quadro sem final e abriga frase “apocalíptica” How Will the World End? (como o mundo irá acabar?) para remeter ao sentimento de angústia. Assim como a cadeira mais alta, suspensa por cordas que não tem a visão de baixo, mas sim de cima, ou as cadeiras que igualmente estão suspensas, mas são “balanços”, ora a molécula da serotonina (substância que ajuda a equilibrar o humor) feita de aço pendurada na sala para se referir ao humor dos estudantes.


Apesar do projeto da artista não possuir referência direta com a teoria de Paulo Freire, La Escuela del desencanto se conecta com seu pensamento, por fazer referência a já mencionada opressão e desconforto do processo escolar que não considera a inserção dos conhecimentos do aluno e torna o aprendizado mecânico e melancólico. É importante refletir sobre o motivo gerador dessa tristeza e mecanicidade, ainda apoiadas pela configuração da escola tradicional, que abriga essa característica do ensino advindo somente dos professores, a fim de ser analisado, processado e transformado com fins de consumo inerte dos estudantes. Talvez com intuito de propor a reconfiguração lentamente das realidades de muitas das salas de aula, o questionamento de Tolstói sobre o professor igualmente poder aprender com os alunos seja válido. Nesse sentido, poderia ser interessante tencionar a posição do estudante na escola como indivíduo com suas vivências que pode partilhar seus interesses, percepções e ideias e correlacionar com o que está sendo estudado e propor atividades para que fuja da lógica de “depósito” de Paulo Freire e da ideia de desencanto proposta por Catalina Quijano. A partir disso cabe aos professores provocar os alunos e os convidar ao diálogo, possibilitando também a inversão do “fluxo” do ensino.

Catalina Juramillo Quijano - La Escuela del desencanto (2020)



sobre a autora:

Clara Pitanga Rocha é graduanda na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atualmente faz parte do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES), com o objetivo de estudar os caminhos e as relações entre arte contemporânea e educação.



referências:

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

TOLSTÓI, Liev. Guerra e Paz. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Site artista: http://catalinajq.com

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