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“professor de arte não é decorador!”

Imagine a seguinte cena: você está pelo corredor da escola até que avista a Professora de arte, cheia de livros e materiais diversos nas mãos, provavelmente indo em direção a sala dos professores ou a sala ambiente de sua disciplina. A professora interrompe sua caminhada porque uma voz a chama e faz virar-se em direção a sala da Diretora, que a convida a entrar no espaço.


Lá dentro o que acontece é a seguinte situação: a Diretora conta para a Professora de arte que dentro de duas semanas ocorrerá um evento na escola, uma gincana para os alunos do ensino fundamental e médio, que seriam separados em grupos e participariam de diversas atividades promovidas pela escola. A conversa não acaba por aí, porque a diretora informa a professora de arte que ela seria responsável por decorar a escola para o evento e que deveria enfeitar desde a entrada do edifício, os corredores, até o pátio, local no qual a gincana ocorreria. Nesse momento a professora de arte já está com a cabeça a mil, com conteúdos para estudar, aulas para planejar, atividades para desenvolver, pautas para preencher, provas para elaborar e trabalhos realizados pelos seus alunos para avaliar. Decorar a escola seria mais uma atividade a ser adicionada na sua grande lista/agenda docente.


Na sua cabeça essa situação era muito diferente das funções que uma arte/educadora deveria exercer. Ela que havia estudado quatro anos e meio, lido inúmeros livros, estudado a história da arte, suas linguagens, práticas educativas do ensino de arte, a história da educação, feito todos os estágios necessários e participado de grupos de pesquisa, agora teria uma outra função completamente diferente das de um professor de arte no seu propósito. Agora ela seria também uma decoradora, apesar de não ter aprendido decoração na faculdade, justamente por esse não ser o propósito do curso de Licenciatura em Artes Visuais.


Um intervalo na história fictícia para adicionar uma nota da autora: todos os medos e questionamentos da professora de arte mencionados no texto são pensamentos reais que passam pela minha cabeça desde que escolhi cursar Licenciatura em Artes Visuais e frequento a presente graduação. A personagem aqui foi utilizada para conduzir a narrativa e elucidar os pensamentos.


Continuando, o tormento dessa nova tarefa a ser assumida assusta a Professora da história porque a personagem se recorda da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que visa a arte para fomentar o desenvolvimento cultural dos alunos, assim como lembra dos preceitos da Base Nacional Comum Curricular, na qual a arte é proposta a fim de auxiliar no desenvolvimento da criticidade a partir dos diálogos e aprendizados acerca das culturas e suas produções. No documento mais recente proposto pelo Ministério da Educação que regulamenta a educação básica consta que “As Artes Visuais são os processos e produtos artísticos e culturais, nos diversos tempos históricos e contextos sociais, que têm a expressão visual como elemento de comunicação. Essas manifestações resultam de explorações plurais e transformações de materiais, de recursos tecnológicos e de apropriações da cultura cotidiana. As Artes Visuais possibilitam aos alunos explorar múltiplas culturas visuais, dialogar com as diferenças e conhecer outros espaços e possibilidades inventivas e expressivas, de modo a ampliar os limites escolares e criar novas formas de interação artística e de produção cultural, sejam elas concretas, sejam elas simbólicas”.


A partir desse pensamento a Professora de arte se questiona qual era o princípio da orientação da Diretora, qual era o propósito do decorar presente nesse contexto do evento? Será que ele estava alinhado com o propósito da disciplina na escola e também com a função da professora? Aquela não havia sido a primeira vez que a professora recebeu um pedido como esse, ela já foi responsável pela decoração escolar em outros eventos como festa junina, carnaval, páscoa, dia dos pais, dia das mães e dia das mulheres, entre outros.


O grande questionamento que fica é: o que os alunos “ganham” com essas decorações? Isso porque uma decoração apenas por decorar não seria responsável por apresentar nela informações/questionamentos e pensamentos alinhados com a proposta do ensino em arte de desenvolver a criticidade e promover o encontro com as manifestações artísticas e culturais, não estaria afinada com os propósitos do ensino da arte, não estaria correspondendo aos documentos reguladores da educação básica.

Isso tudo é uma problemática quando as imagens presentes nos enfeites em murais e paredes são sem propósito educativo, quando se trata de um “decorar por decorar”, proposto somente para enfeitar, que ainda acaba caindo em imagens estereotipadas, seguindo padrões, moldes e formas específicas, como personagens copiados, imagens esquemáticas ou fotocopiadas, borboletas, corações e flores, desconsiderando justamente a pluralidade imagética existente no mundo e, consequentemente, não contribuindo para o desenvolvimento cultural e crítico dos estudantes.


Boa parte das visões acerca do ensino de arte e igualmente da visão que muitas escolas e comunidades têm em relação aos professores de arte (e que contribuem para que a noção do professor-decorador) vem do histórico da própria disciplina. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais “A arte na escola já foi considerada matéria, disciplina, atividade, mas sempre mantida à margem das áreas curriculares tidas como mais ‘nobres’. Esse lugar menos privilegiado corresponde ao desconhecimento, em termos pedagógicos, de como se trabalhar o poder da imagem, do som, do movimento e da percepção estética como fontes de conhecimento”. Além desse fato apontado, a partir dos anos 70, quando a arte foi incluída no currículo escolar, ela possuía o título “Educação Artística”, entretanto, ainda não era reconhecida como disciplina, mas como atividade educativa, portanto, não possuía destaque como uma matéria fundamental aos alunos.


Foi a partir dos anos 80 que os professores de arte formaram um movimento a fim de promover integração profissional e discussões acerca do ensino de arte, período também no qual novas concepções de educação em arte se fortaleceram - com a criação de Federações e Associações que formaram o campo como conhecemos hoje. Mediante a isso, as reflexões na área foram surgindo, assim como eventos para discussão, até que o ano de 1996 marcou a inclusão da arte como disciplina no currículo, determinando apenas o começo para o momento em que novas pesquisas e estudos surgiram a fim de contribuir com o campo.


Apesar do ocorrido em 1996 ter sido uma conquista para a arte e para a educação, todo esse histórico da visão do seu espaço na escola ao longo das décadas ainda influencia muito os pensamentos que existem até os dias atuais. Isso porque a arte por vezes é vista como disciplina à margem de outras disciplinas, como matéria decorativa ou até mesmo como área que deve estar à disposição/serviço das outras, principalmente para auxiliar na criação de murais, enfeites ou projetos que requerem alguma habilidade manual, como construção de foguetes para a aula de física, elaboração de células humanas em isopor para a aula de ciências, esculturas de formas geométricas para a aula de matemática ou desenvolvimento de cenários para o teatro da aula de português, para sugerir alguns exemplos.

Esse cenário se configura como um impasse, já que arte hoje é sim uma disciplina que exige o estudo de conteúdos específicos, como os que estão presentes hoje na BNCC e anteriormente nos PCNs, tais como: explorar as produções visuais de tempos diferentes e contextos culturais distintos; compreender as linguagens da arte e a influência da tecnologia; conhecer as diversas matrizes estéticas e culturais; estudar as relações entre arte, mídia, mercado e consumo; analisar o sistema da arte, reconhecer questões acerca do patrimônio material e imaterial; refletir acerca de questões políticas, sociais, econômicas, científicas, tecnológicas e culturais a partir de produções artísticas; experimentar e investigar processos de criação a partir de atividades práticas; e analisar a produção imagética elaborada no decorrer da história da arte.


Portanto, diante do extenso conjunto de conteúdos que compõem o campo do ensino de artes visuais, precisa-se de tempo e desenvolvimento, tanto dos professores de arte como dos alunos, para realizar a aprendizagem na área. O que configura que a ideia da arte como matéria à serviço de outras disciplinas se consolida como uma concepção errônea, já que a disciplina também tem conteúdos como as demais, logo, precisa do mesmo espaço dentro das matrizes curriculares.


Além de que a ideia da arte como apenas manualidade também pode ser considerada equivocada, já que os próprios conteúdos presentes na BNCC demonstram que arte vai além do manual, também aborda história, análise, reflexão, pesquisa e investigação. Por isso, não justifica a visão do professor de arte como alguém responsável pelas atividades manuais de decoração do espaço escolar ou suporte das demais áreas de conhecimento.


A grande questão é: que tal o espaço escolar ser usado por todos os professores? Por que não promover a integração com o espaço da escola a fim de ser ocupado por todas as disciplinas com seus projetos? No lugar de um decorar por decorar, por que não utilizar as paredes, os murais e os pátios para o desenvolvimento de projetos com os alunos que promovam a reflexão do que foi estudado, ou no caso da gincana, por que os espaços nos quais a Diretora pediu para serem decorados não se tornem parte da atividade? Não mais na repetição do “decorar/enfeitar”, mas com proposta educativa de intervenção no espaço cotidiano dos alunos, ou seja, a escola como um espaço expositivo de reflexão ou, nessa situação, um espaço para apresentar os processos e resultados das atividades realizadas pelos estudantes no evento.


A problemática não está em ocupar as paredes e os murais da escola, o problema é decorar sem um propósito educativo, apontar a demanda da decoração como responsabilidade única e restrita dos professores de arte. Todas essas questões não são apenas pensamentos da personagem fictícia do texto, mas pontos a serem refletidos por educadores e profissionais escolares, que atravessam os debates do campo, mas precisam também reverberar dentro das escolas. Se a arte hoje ocupa um espaço, que ele seja explorado dentro das suas reais funções e propostas e, portanto, que corresponda às conquistas travadas pelos arte/educadores no entendimento do campo como área de conhecimento, com metodologias e conteúdos específicos.

Prof. Martim - Tirinha “Professor de arte não é decorador de ambiente!” instagram @prof.martim


Essa é uma inquietação que atravessa minha formação como Licencianda em Artes Visuais, perpassa as disciplinas cursadas e identifica-se na prática dos professores, vide o quadrinho criado pelo Professor Martim, que ilustra experiências vividas no âmbito escolar, marcando os desenganos em relação a disciplina que ministra.



sobre a autora:

Clara Pitanga Rocha é graduanda na Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente faz parte do "Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea" (CE/UFES), e do grupo de pesquisa "Estudos de práticas fotográficas autorais". É membro e bolsista do projeto de extensão "Interfaces do ensino da arte" e do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo (NAVEES). Pesquisa o caminhar como uma prática artística e educativa e desenvolve materiais e jogos educativos para o ensino.



referência:

http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/arte.pdf

http://basenacionalcomum.mec.gov.br/

Imagem utilizada: @prof.martim, Martim, professor de Arte

Título do texto: Referência ao @prof.martim


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